O Reflexo
O Reflexo
Ele sempre sentiu como se estivesse sendo observado, uma sensação que nunca o deixava. Era algo que pairava no ar, invisível, mas palpável — um peso nos ombros que o fazia olhar por cima do ombro mesmo quando sabia que estava sozinho. Certa vez, ao caminhar pela rua deserta à noite, ele jurou ouvir passos atrás de si, mas, ao virar-se, encontrou apenas o vazio iluminado pelos postes tremeluzentes. Ainda assim, a sensação permanecia, como uma sombra que o seguia, silenciosa e persistente.
Essa sensação era especialmente intensa em casa, onde as paredes pareciam fechar-se sobre ele e os cantos escuros dos cômodos pareciam ganhar vida. Ele tentava ignorá-la, convencer-se de que era apenas sua mente exausta criando monstros onde não havia nenhum. Mas certa noite, ao passar diante do espelho em seu quarto, algo o fez paralisar. Não foi apenas o sorriso estranho que escapou de seus lábios involuntariamente, mas a forma como seu reflexo pareceu hesitar antes de imitá-lo. Havia algo... errado. Uma distorção sutil nas feições, como se o vidro estivesse derretendo lentamente. E, por trás dele, uma sombra indistinta começou a tomar forma, observando-o com olhos que não pertenciam a este mundo.
A figura no espelho, com uma lentidão perturbadora, começou a imitar seus movimentos, mas de maneira distorcida. Quando ele levantava a mão direita, o reflexo levantava a esquerda, mas com um atraso imperceptível. Era como se o espelho estivesse fora de sincronia, como se estivesse esperando o momento certo para agir. Sua respiração se tornou ofegante, e ele tentou afastar-se, mas seus olhos estavam fixos naquele ser que o encarava com um sorriso torcido. O reflexo agora parecia vivo, independente, e cada gesto seu era respondido com uma crueldade crescente.
Ele começou a se mover mais rápido, tentando testar o reflexo, mas o espelho acompanhava seus movimentos com uma precisão assustadora. Quando olhou para o lado, viu a figura fora do espelho, no canto da sala. Era impossível — ele sabia disso —, mas lá estava ela, uma silhueta escura e amorfa, com olhos que brilhavam como brasas. A sensação de pavor tomou conta dele enquanto uma voz, gélida e profunda, sussurrou seu nome. Mas não era sua voz. Era algo... mais sombrio, mais antigo, como se viesse de um lugar além do tempo.
Ele tentou gritar, mas nada saiu. Seus lábios se moveram, mas o som ficou preso em sua garganta, como se algo dentro dele o estivesse sufocando. A figura no espelho inclinou a cabeça, como se estivesse divertida com seu desespero, e então começou a avançar. Não fisicamente, mas de alguma forma, ele podia sentir sua presença se aproximando, como uma maré negra subindo por suas pernas, envolvendo-o em um abraço gelado.
O pânico tomou conta dele, e, sem pensar, ele avançou em direção ao espelho, batendo nele com toda a força, tentando se libertar daquela prisão. O vidro se estilhaçou em uma explosão de cacos, mas, ao invés de se sentir aliviado, ele percebeu algo ainda mais terrível: os fragmentos não refletiam mais a sala. Cada pedaço de vidro refletia uma versão distorcida da figura sombria, que agora estava em toda parte, cercando-o. Ele sentiu a pressão de cada olhar, como se a presença estivesse se multiplicando, cada uma mais próxima, mais ameaçadora.
Os cacos começaram a flutuar no ar, girando lentamente, como se fossem partes de um quebra-cabeça macabro. Ele tentou recuar, mas suas pernas não obedeciam. Seus gritos ecoaram no silêncio, mas eram abafados pela intensa sensação de que algo o estava consumindo. As figuras nos cacos começaram a se fundir, formando uma única entidade que preenchia todo o espaço ao seu redor. Ele sentiu seu corpo sendo sugado para dentro do espelho, como se estivesse sendo arrastado para um abismo sem fim.
E então, como se em um pesadelo sem fim, ele se viu dentro do espelho. Não era mais ele quem estava do lado de fora, mas a figura sombria que agora o encarava, sorrindo. A verdade revelou-se, cruel e implacável: ele nunca foi o reflexo. Sempre foi a figura sombria, observando e manipulando o homem que acreditava ser ele. O que ele via no espelho não era seu reflexo, mas uma ilusão construída para aprisioná-lo.
Ele havia trocado de lugar com o ser sombrio há muito tempo, talvez anos, e agora era ele quem estava preso, encarando o homem que havia sido, enquanto o ser assumia o controle do mundo do lado de fora. O espelho, agora quebrado, não tinha mais importância. Ele estava perdido em sua própria realidade distorcida, para sempre.
Mas, enquanto observava o homem do outro lado — aquele que agora vivia sua vida —, ele percebeu algo ainda mais terrível. O homem sorriu para ele, um sorriso frio e calculista, e murmurou algo que ele não conseguiu entender. Então, o homem virou-se e saiu do quarto, deixando-o sozinho no espelho. Ele percebeu, com um horror absoluto, que o ciclo havia começado novamente. Outro alguém estava prestes a ser enganado, aprisionado, substituído. E ele, agora, era apenas mais uma peça nesse jogo infinito de identidades roubadas.
